16ª Mini-Jornada da Família
"O
consumismo material e a educação familiar"
ARTIGOS E MENSAGENS
Do consumidor ao
cliente
Por Gilson
Schwartz
A explicação do consumo não foi além do que se debate há
séculos na economia
Para os economistas, considerar o consumo como um princípio
organizador do sistema não é novidade. De modo talvez mais
frio e calculista, é o que os marginalistas ou
neoclássicos vêm dizendo desde o final do século 19. Já no
plano filosófico e cultural, o consumismo (em especial nos
países ricos) tem sido alvo de análises e críticas desde a
revolução hippie dos anos 60. Janis Joplin pedia então a
Deus que lhe providenciasse um Mercedes Benz. All my
friends have Porsches, justificava a humorada canção de
protesto. A quem interessar possa, o Porsche psicodélico da
mesma Janis Joplin está atualmente no saguão de entrada de
uma exposição sobre a criatividade dos anos 60 no Museu de
Arte Moderna de São Francisco. Entre os pensadores rebeldes
da economia política o tema também já deu muitas voltas. Os
paradoxos de uma classe ociosa deram o mote para um dos
fundadores do que se viria a conhecer como a vertente
institucionalista no pensamento econômico, Thorstein Veblen,
em 1899. A rigor, desde as suas origens, a economia política
buscou na satisfação dos interesses e necessidades dos
indivíduos as suas raízes ou talvez a sua âncora (para
usar uma expressão que ficou na moda mais recentemente).
Adam Smith fazia digressões sobre a riqueza das nações, mas
toda a genialidade de sua imagem da mão invisível deriva do
paradoxo altamente positivo entre a busca fundamental de
satisfação individual ou do interesse egoísta, de um lado, e
a promoção do máximo de bem comum, de outro.
O sistema pressupõe um estado de confiança normal. Em Smith,
que além de criar sua economia política cultivava uma
filosofia moral, a arqueologia dos compromissos humanos
revelava uma espécie de fundamento natural que ele definiu
como a Simpatia. Albert Hirschman foi um dos autores
heterodoxos que sublinhou o parentesco entre essa estratégia
retórica e a camuflagem de interesses. Estava em jogo
garantir, ideologicamente, que o predomínio dos interesses
privados fortaleceria o coletivo. Em termos filosóficos,
isso significa que o reino da necessidade perde
objetividade. Ou seja, o ser social e mesmo a política não
se estabelecem sobre o terreno das necessidades humanas, mas
sim a partir da interação feliz entre sujeitos cuja
autonomia nunca é posta em questão. O terreno das
necessidades dá lugar ao teatro das preferências e opções
individuais. É esse deslocamento que dá fluxo às energias do
liberalismo clássico e do neoliberalismo contemporâneo.
Ocorre que a ciência econômica, no final do século 19,
descartou a referência a interesses e outros fatores
considerados extra-econômicos ou irracionais. Colocou, em
seu lugar, modelos formais de preferência revelada e
maximização sob restrições. Dessa mutação cientificista
brotaram duas vertentes, micro e macroeconômica,
aparentemente antagônicas mas que afinal convergiram num
modelo mais geral.
De um lado, foi aperfeiçoada a visão do homo oeconomicus
como agente capaz de traduzir suas necessidades em
preferências. Esse seria o fundamento microeconômico da
racionalidade humana, sujeito ao que Doyal e Gough
caracterizam como o princípio da soberania privada. De
outro, desenvolveu-se uma visão macroeconômica, em que o
consumo (matematicamente, uma função consumo) está
correlacionado a variáveis como renda disponível, renda ao
longo da vida, hipóteses sobre a dinâmica entre gerações ou
sobre a propensão a consumir e a poupar em termos de fatores
sociais, culturais e até mesmo étnicos.
Para o indivíduo do próximo século, o consumo dependerá do
seu nível de educação
A fundamentação microeconômica do consumo tem efeitos
políticos claros: se não há uma noção objetiva de
necessidades humanas, se toda decisão de consumo é racional,
pois depende da ordenação de preferências por parte de
indivíduos soberanos, toda pretensão de regular o consumo
(por meio do Estado ou políticas de bem-estar social, por
exemplo) não passaria de fantasia metafísica ou, pior,
tentação totalitária. Essa é a visão da nova direita, em
alguns casos sob a roupagem libertária (com destaque para as
obras de Hayek e Nozick). A construção de modelos
macroeconômicos, parcialmente inspirados na obra de Keynes,
completou a amarração neoliberal. A ponto de Michael R.
Darby, no seu verbete sobre consumo no The New Palgrave
Dictionary of Economics, declarar que a função consumo se
desvaneceu como tópico de pesquisa intensiva sobretudo em
razão do sucesso de trabalhos anteriores na elaboração de um
consenso prático. Nessa visão, o consumo é função da renda.
Toda a atenção desloca-se portanto para as medidas dessa
dependência (a propensão a consumir). Indivíduos com renda
baixa tendem a gastar toda a sua renda em consumo. Na medida
em que aumenta o nível de renda, aumenta a propensão a
poupar (reduz-se a proporção da renda que é gasta em
consumo).
Modelos de equilíbrio
A partir daí, os modelos tornaram-se mais sofisticados e, no
limite, resgataram o fundamento microeconômico. Ou seja, não
basta a referência à renda, é preciso especificar como os
indivíduos fazem as suas escolhas. Surgiram modelos
conhecidos como de ciclo de vida: os agentes resolvem
problemas de distribuição de seu consumo ao longo do tempo
(problemas de consumo intertemporal). Nessa decisão entram
em cena aspectos ligados à renda, mas também motivos ligados
à precaução (por exemplo, expectativas de restrições
financeiras ou de liquidez, grau de aversão ao risco e ao
endividamento) e mesmo institucionais (como no célebre
exemplo do Japão, onde o consumo seria baixo e a poupança
elevada por causa da escassez de imóveis e, mais
recentemente, devido ao medo do desemprego). Muito
facilmente, portanto, o debate sobre consumo na teoria
econômica convencional desloca-se para o terreno de modelos
de equilíbrio geral, em que a micro e a macroeconomia
funcionam harmonicamente sob o princípio da soberania
privada. Mesmo entre os pensadores mais rebeldes o consumo
veio para primeiro plano. Em 1973, o pós-marxista Jean
Baudrillard declarava algo com que economistas neomarxistas
e regulacionistas afinal concordariam: o esgotamento do
modelo fordista. Era o fim da produção como princípio
organizador da sociedade (modelo calcado no sistema
industrial de produção de massa inaugurado no início do
século pela Ford). No seu lugar, os problemas de motivação e
promoção do consumo ficavam em primeiro plano. Aliás, desde
o início do século outro economista de inspiração marxista
chamava a atenção para certo tipo de consumo como força
motriz. Para o polonês Michal Kalecki, o consumo que faz a
diferença é o consumo dos capitalistas. Esse panorama de
ideias sobre o consumo, mais ou menos estável tanto à
esquerda quanto à direita, enfrenta um novo desafio teórico
a partir da emergência de uma economia de redes (Internet
etc.) ou de um suposto novo paradigma, não apenas econômico,
mas, segundo os mais eufóricos, até mesmo civilizacional.
Mas entre os acadêmicos mais sérios ainda há muito ceticismo
quanto ao eventual impacto das redes nas teorias econômicas
do consumo. Muito do que se apresenta atualmente como
novidade revolucionária já estava presente em Baudrillard,
que chamava a atenção para a produção e circulação de
signos, e em Keynes, que alertava para a subordinação das
decisões de investimento (e, portanto, de produção, emprego
e consumo) aos sinais e expectativas formadas e processadas
no sistema financeiro. Tudo muito antes da Internet.
Porta-estandarte
Voltando ainda mais no tempo, o próprio Marx já alertava
para o caráter de fetiche ou simulacro do sistema de preços
e salários. O materialismo de Marx começava e terminava com
a própria mercadoria, matéria e condição da sobrevivência,
alvo de investimento (até libidinal) do consumidor que se
crê autônomo, mas que também serve de porta-estandarte da
alienação. Talvez o tema realmente novo não seja
propriamente o consumidor (consumer), mas sim a figura do
cliente (customer). É aliás interessante usar os termos de
engenharia da rede, onde as máquinas são organizadas em
sistemas de clientes e servidores, para designar o novo
estatuto civil dos indivíduos que interagem com o mercado.
Mesmo o consumidor racional do pensamento econômico
tradicional, que fazia escolhas, era passivo. Na mais
rigorosa formalização do equilíbrio geral, feita ainda no
final dos anos 50 por Arrow e Debreu, cada agente toma
decisões com base num consumption set (conjunto
pressuposto de alternativas de consumo). Do consumidor ao
cliente algo pode mudar. Da passividade supostamente
racional pode brotar uma atividade que, no entanto, nunca
será totalmente racional ou teorizável. Essa possibilidade
está inscrita na banalidade da expressão o cliente em
primeiro lugar. Possibilidade, pois é rara a empresa que se
dispõe a enfrentar o cliente inquisidor como algo mais que
um estorvo. E talvez mais raros ainda sejam os consumidores
preparados para ultrapassar o limiar da passividade bovina
cultivada pelo marketing de massa. Mas as novas tecnologias
também prometem um marketing de nicho. E a disputa entre
padrões é ainda tão intensa que, embora obter ganhos de
escala ainda seja uma condição de acumulação de capital, há
imensos espaços abertos à ação dos clientes e de
organizações públicas (governamentais e não-governamentais).
A difusão de novas tecnologias agudiza um problema de
atrelamento dos clientes a determinados padrões (lock-in).
Dominar mercados significa conquistar adeptos para um padrão
(por exemplo, Windows, Mac ou Linux). Não se trata de novas
teorias econômicas. O estudo do consumo aproxima-se mais da
prática do marketing, mas a emergência de novos modos de
consumo deixa ainda uma fresta para a política e a
domesticação dos espíritos animais do capitalismo. O
processo de decisão dos clientes têm sido analisado de modo
mais detalhado e empírico. As diferenças individuais e os
processos psicológicos são atrelados à capacidade de
conhecimento dos compradores e à sua subordinação a fatores
ambientais e organizacionais.
Camisa-de-força
A ciência cognitiva, os modelos de funcionamento da memória
e até estudos da movimentação do globo ocular diante de uma
tela de computador são mobilizados para forjar uma suposta
ciência das compras e vendas que, apesar de toda essa
sofisticação, não consegue nem dar um passo sequer além do
que se debate há séculos em teoria econômica ou filosofia do
conhecimento. Quando muito, refinam-se as variantes de
behaviorismo ou utilitarismo.
A esperança de uma nova humanidade continua inspirada numa
espécie de neo-iluminismo. Só uma autêntica capacidade
individual e coletiva de ampliar as oportunidades de criação
de conhecimento permitiria escapar a essa camisa-de-força
sem cair no fetiche da mercadoria (como nos marxistas), na
escolha racional com base na comparação estática de preços e
retornos (como nos marginalistas) ou na sujeição dos
indivíduos e do sistema econômico às decisões do mercado
financeiro (como nos keynesianos).
A escolha autêntica depende efetivamente do grau de
informação, conhecimento e criatividade do cliente e de sua
capacidade de viver sobre bases mais autônomas e com maior
poder de negociação diante dos padrões tecnológicos em
mutação permanente. Para o indivíduo do século 21, mais que
renda, sedução ou especulação, o consumo dependerá do seu
nível de educação e amadurecimento mental (intelectual ou
espiritual).Se vivesse agora, Janis Joplin cantaria: Oh
Lord, wont you buy me, a good MBA
All my friends are PhDs
(Senhor, não vais comprar-me um bom MBA
Todos meus amigos
são doutores
).
Fonte:
www.penaestrada.org/consumoconsciente/do-consumidor-ao-cliente
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www.espiritismo.net/familia.
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